25.5.06

Almeida Garrett



Acabava ali a terra
Nos derradeiros rochedos,
A deserta, árida serra
Por entre os negros penedos
Só deixa viver mesquinho
Triste pinheiro maninho.

E os ventos despregados
Sopravam rijos na rama,
E os céus turvos, anuviados,
O mar que incessantemente brama...
Tudo ali era braveza
de selvagem natureza.

Aí, na quebra do monte,
Entre uns juncos malmedrados,
Seco o rio, seca a fonte,
Ervas e matos queimados,
Aí nessa bruta serra,
Aí foi um céu na terra.

Ali no mundo, sós,
Santo Deus! Como vivemos!
Como éramos tudo nós
E como folgava a vida
de tudo o mais esquecida!

Que longos beijos sem fim,
Que falar dos olhos do mundo!
Como ela vivia em mim,
Como eu tinha nela tudo,
Minha alma em sua razão,
Meu sangue em seu coração!

Os anjos aqueles dias
Contaram na eternidade:
Que essas horas fugidias,
Séculos na intensidade,
Por milénios marca Deus
Quando as dá aos que são seus.

Ai! sim, foi a tragos largos,
Longos, fundos, que a bebi
Do prazer a taça: - amargos
Depois... depois os senti
Os travos que ela deixou...
Mas como eu ninguém gozou.

Ninguém: que é preciso amar
Como eu amei - ser amado
Como eu fui; dar, e tomar
Do outro ser a que se há dado,
Toda a razão, toda a vida
Que em nós se anula perdida.

Ai, ai! que pesados anos
Tardios depois vieram!
Oh! que fatais desenganos,
Ramo a ramo, a desfizeram
A minha choça na serra,
Lá onde se acaba a terra!

Se o visse... não quero vê-lo
Aquele sítio encantado;
Certo estou não conhecê-lo,
Tão outro estará mudado,
Mudado como eu, como ela,
Que a vejo sem conhecê-la!

Inda ali acaba a terra,
Mas já o céu não começa;
Que aquela visão da serra
Sumiu-se na treva espessa,
E deixou nua a bruteza
Dessa agreste natureza.


Cascais de Lírica Completa Lisboa, Arcádia 1971

Imagem: Carlos de Bragança (Rei de Portugal), 1863-1908

Praia de Cascais1906, aguarelaCasa-Museu Anastácio GonçalvesLisboa, Portugal


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