9.5.06

Mário de Sá Carneiro



1

Um vago tom de tom de opala debelou

Prolixos funerais de luto de Astro -
E pelo espaço, a Oiro se enfolou
O estandarte real - livre, sem mastro.

Fantástica bandeira sem suporte,
Incerta, nevoenta, recamada -
A desdobrar-se como a minha Sorte
Predita por ciganos numa estrada...

2

Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.
- Desçamos panos de fundo
A cada hora vivida!

Desfiles, danças - embora
Mal sejam uma ilusão...
Cenários de mutação
Pela minha vida fora!

Quero ser Eu plenamente:
Eu, o possesso do Pasmo.
- Todo o meu entusiasmo,
Ah! que seja o meu Oriente!

O grande doido, o varrido,
O perdulário do Instante -
O amante sem amante,
Ora amado ora traído...

Lançar os barcos ao Mar -
De névoa, em rumo de incerto...
- P'ra mim o longe é mais perto
Do que o presente lugar.

...E as minhas unhas polidas -
Ideia de olhos pintados...
Meus sentidos maquilhados
A tintas desconhecidas...

Mistério duma incerteza
Que nunca se há-de fixar...
Sonhador em frente ao mar
Duma olvidada riqueza...

- Num programa de teatro
Suceda-se a minha vida -
Escada de Oiro descida
Aos pinotes, quatro a quatro!...

3

- Embora num funeral
Desfraldemos as bandeiras:
Só as Cores são verdadeiras -
Siga sempre o festival!

Quermesse - eia! - e ruído!
Louça quebrada! Tropel!
(Defronte do carrocel,
Eu, em ternura esquecido...).

Fitas de cor, vozearia -
Os automóveis repletos:
Seus chauffeurs - os meus afectos
Com librés de fantasia!

Ser bom... Gostaria tanto
De o ser... Mas como? Afinal
Só se me fizesse mal
Eu fruiria esse encanto.

- Afectos?... Divagações...
Amigo dos meus amigos...
Amizades são castigos,
Não me embaraço em prisões!

Fiz deles os meus criados,
Com muita pena - decerto.
Mas quero o Salão aberto,
E os meus braços repousados.

4

As grandes Horas! - vivê-las
A preço mesmo dum crime!
Só a beleza redime -
Sacrifícios são novelas.

«Ganhar o pão do seu dia
Com o suor do seu rosto...»
- Mas não há maior desgosto
Nem há maior vilania!

E quem for Grande não venha
Dizer-me que passa fome:
Nada há que se não dome
Quando a Estrela for tamanha!

Nem receios nem temores,
Mesmo que sofra por nós
Quem nos faz bem. Esses dós
Impeçam os inferiores.

Os Grandes, partam - dominem
Sua sorte em suas mãos:
- Toldados, inúteis, vãos,
Que o seu Destino imaginem!

Nada nos pode deter;
O nosso caminho é de Astro;
Luto - embora! - o nosso rastro,
Se p'ra nós Oiro há-de ser!...


5

Vaga lenda facetada
A imprevisto e miragens -
Um grande livro de imagens,
Uma toalha bordada...

Um baile russo a mil cores,
Um Domingo de Paris -
Cofre de Imperatriz
Roubado por malfeitores...

Antiga quinta deserta
Em que os donos faleceram -
Porta de cristal aberta
Sobre sonhos que esqueceram...

Um lago à luz do luar
Com um barquinho de corda...
Saudade que não recorda -
Bola de ténis no ar...

Um leque que se rasgou -
Anel perdido no parque -
Lenço que acenou no embarque
De Aquela que não voltou...

Praia de banhos do sul
Com meninos a brincar
Descalços, à beira-mar,
Em tardes de céu azul...

Viagem circulatória
Num expresso de vagões-leitos -
Balão aceso - defeitos
De instalação provisória...

Palace cosmopolita
De rastaquouères e cocottes -
Audaciosos decotes
Duma francesa bonita...

Confusão de music-hall,
Aplausos e brou-u-ha -
Interminável sofá
Dum estofo profundo e mole...

Pinturas a «ripolin»,
Anúncios pelos telhados -
O barulho dos teclados
Das Lynotype do «Matin»...

Manchette de sensação
Transmitida a todo o mundo -
Famoso artigo de fundo
Que acende uma revolução...

Um sobrescrito lacrado
Que transviou no correio,
E nos chega sujo - cheio
De carimbos, lado a lado...

Nobre ponte citadina
De intranquila capital -
A humidade outonal
De uma manhã de neblina...

Uma bebida gelada -
Presentes todos os dias...
Champanhe em taças esguias
Ou água ao sol entornada...

Uma gaveta secreta
Com segredos de adultérios...
Porta falsa de mistérios -
Toda uma estante repleta:

Seja enfim a minha vida
Tarada de ócios e Lua:
Vida de Café e rua,
Dolorosa, suspendida -

Ah! mas de enlevo tão grande
Que outra nem sonho ou prevejo...
- A eterna mágoa dum beijo,
Essa mesma, ela me expande...


6

Um frenesi hialino arrepiou
P'ra sempre a minha carne e a minha vida.
Fui um barco de vela que parou
Em súbita baia adormecida...

Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e anil,
Na ideia de um país de gaze e Abril,
Em duvidosa e tremulante imagem...

Parou ali a barca - e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou... - ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo...

Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguescida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor-de-rosa,
As torres de platina e de saudade.

Avenidas de seda deslizando,
Praças de honra libertas sobre o mar -
Jardins onde as flores fossem luar;
Lagos - carícias de âmbar flutuando...

Os palácios a rendas e escumalha,
De filigrana e cinza as catedrais -
Sobre a cidade a luz - esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais...

Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
Uma Veneza de capricho - solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada...

Exílio branco - a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos - seu brou-u-ha...
E na Praça mais larga, em frágil cera,
Eu - a estátua «que nunca tombará»...

7

Meu alvoroço de oiro e lua
Tinha por fim que transbordar...
- Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E não a posso ir apanhar!


Sete Canções de Declínio de Indícios de Oiro
Imagem:Evgeny Freeone

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