9.5.06

Pedro Sena-Lino



[materna matéria]

«hoje eu sei que ela é a fonte»

Herberto Helder

i.

a Mãe deitou-se no texto. abriu o céu na garganta, do oriente ao ocidente das coisas. um a um lentos de revelações-rosto, os poemas da água e da morte lhe teceram os cabelos de longe, os olhos da metáfora nascidos distância. a Mãe entregou-se nua e una aos pesadelos, um a um deitados sobre o seu corpo de água; fadas, duendes, anjos doentes, peregrinos de astros e homens comuns: todos pousaram o sexo sobre a casa de ondas e de bruma, e foram um. a Mãe deixou cair os véus de lua e sono sobre o chão, abriu os braços em asa, e recebeu o abismo. morte chamou-se este acto, desde esse tempo se porto, até aos dias de chuva no colo.
correram nove sem luar. os seres-pais correram ao seu corpo, tangendo êxtases de sangue. beijaram-lhe os flancos de rio para que corresse a verdadeira fonte. a Mãe colocou o livro, o livro vivo entre os dentes, calou-o de lágrimas no centro do peito, e mordeu a voz. e Deus voz a recebeu, voz a aceitou desligada e crua entre todas as coisas.
e depois os anjos nasceram do seu sangue.a Mãe deitou-se a correr com a fonte, fonte que nasce dos versos, a fonte primeira e pura onde aprendeu o amor da água nos cabelos, a fonte branca que procuro eu, doente da infância.
a Mãe deitou-se morta e acordou morrida. ao seu lado, das chamas do livro, nasci-lhe eu. a Mãe nasceu o poema que correria a vida depois, a vida inteira eu.
a vida transversal inteira e nua.
a vida morta dos anjos e das palavras-fonte.


ii.

teve outros anjos e demónios a segurar-lhe o rosto. teve outras línguas na boca e espadas múltiplas a fazer-lhe a voz. com anjos se deitou e acordou vazia do meu nome como se eu fosse um morto.
bebeu o poema e morreu-se vidro. a Mãe é o único essencial silêncio de todas as coisas.
teve de ter anjos a furar-lhe o seio com bandeiras que secassem. bebeu espadas de ódio na água de estrada suficiente para que nascesse. a Mãe tragou as sombras, cada rosto de sombra para que eu crescesse. porque a Mãe, a Mãe fez-me beber, hora a hora, do seu sangue morto. para que fosse a Mãe sabia que eu deveria beber a sua morte instante, o corte dos abismo rente aos pulsos, a chuva de Jerusalém perdida, o nome esfaqueado da palavra morte.
a Mãe deitou-se no texto. e teve-me no poema infinito, cego de palavras surdas e intraduzíveis corpos.


iii.

morreu o dia.
a Mãe abriu o livro e acariciou as dores.
a noite colocou-se na cruz dos braços, abriu as asas e as danças dos silêncios-fonte. levou-a comigo.
eu continuo cego de fonte. escrevo os braços de noite a treva de luz que me onde.a busca deserto.
a origem. o corpo da Mãe no texto.
eu na Mãe somos um. sou as sedes que viveu há sempre.
a Mãe morreu o dia.
e eu acidentado de infinito, bebendo do seu corpo vermelho livre sangue a sangue a cada gota.
no meu ventre seco do poema-tudo, morro-me instante no sangue e escrevo: a Mãe morreu o dia.




em prelúdios e fugas de As Flores do Sono Lisboa, Litera Pura 2002
imagem:Michał Karcz

Sem comentários: