8.5.07

LIVRO OITAVO - Poesia (excerto)


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«Carta da Região mais Fértil»


vai certamente estranhar esta quase interminável carta
pai
há muito que o silêncio se fez entre nós
o pai com os seus trabalhos por aí onde o tempo custa a passar
e eu pobre de mim
tão aflito me sinto com a velocidade desse mesmo tempo
a cidade é veloz
não sei se o pai poderá compreender esta velocidade
aqui tudo se tornou dia após dia mais doloroso
minha mulher anda atarefadíssima com o arranjo da casa
parece que mais nada existe para ela
eu sempre na rua por aí
porque não consigo suportar aquela barulheira de electrodomésticos
continuamente a funcionarem
já não consigo suportar minha mulher`

saio de casa logo de manhã
muitas vezes não me apetece ali voltar
deambulo pela cidade gasto tempo de café em café
perco-me
noite dentro caminho sem direcção precisa
sem saber para onde vou atravesso a cidade
à procura não sei bem de quê
o corpo esvaziou-se lentamente e
com o passar do tempo sei agora
este casamento foi um erro
estou terrivelmente só
talvez seja por isso que me lembrei de lhe escrever
pai
decidi partir
não me pegunte para onde nem porquê
partir é o que ressoa na minha cabeça
viajar sem fim e jamais voltar
também é inútil perguntar-me as razões de tudo abandonar
este conforto enjoa-me esta vida dá-me vertigens e diarreia
de resto duvido que existam razões de peso
tenho a certeza de que seria capaz de suportar minha mulher
se ainda a amasse
partilharia com ela a loucura que adquiriu pela casa
a semanal mudança de lugar dos móveis
e mais estranho ainda
quando põe a máquina da roupa a trabalhar sem nada lá dentro
diz que adora aquele insuportável ronronar de aço
que lhe faz muita companhia
enfim
se eu ainda a amasse talvez
mas é certo que arranjei outras compensações
a amizade segura de um amigo
talvez seja melhor não revelar grande coisa sobre este assunto
poderia chocar o pai por demasiado íntimo e delicado
que quer
sempre gostei da travessia das noites e das pessoas
e de beber
muitas vezes nem sei quem são as pessoas com quem falo
o pai dir-me-á que tudo isto são simples fugas
é possivel
desde que me conheço que me fujo
amo essas fugas esses pedaços doutras vidas cruzando-se
com pedaços sombrios da minha
não leve a mal estes desvarios
no fundo teria sido melhor para mim ter ficado aí
onde o tempo parece não avançar e a terra é fértil
provavelmente hoje seria um desses pastores que meditam
sobre as fases da lua mesmo antes delas se iniciarem
é possivel que hoje fosse um operário exemplar
trabalharia sem sequer me pôr a questão de que há outro mundo
por descobrir para lá do incessante roncar surdo das máquinas
tudo explodiu dentro de mim e não sei como dizer-lhe
vou largar tudo
a mulher o trabalho a cidade onde vivo a casa de que não gosto
a cidade apagou em mim muitos desejos
a única coisa que ainda faço com prazer é vagabundear
o que não é muito
mas sinto-me livre e feliz e anónimo

[...]


imagem: Mariah

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