9.5.07

Manuel Alegre



[…]

Ainda por cima está de dia, só agora se lembra, tem de fazer a parada e não poderá sair do quartel, como é que vai ver Bárbara, aí está o aperto, é uma constante desde que chegou a Angola.
- Julguei que te tinhas desenfiado – diz-lhe o outro. E entrega-lhe a braçadeira de oficial de dia. Tem de gramar, devia ser sempre feriado para quem ama, aqui está tudo contra. Nem por isso a paixão se vai, antes pelo contrário, cavalgar, cavalgar, cavalgar, nesta balada de amor e morte.
Aperto no estômago, raiva surda, medo de te encontrar e ter-te já perdida, tenho de vê-la seja como for. A menos que…Qual que qual quê, já está no meio da parada, guarda que entra, hop dois, esquerdo direito, bem parece estranha mas bárbara não.
Se melhor o pensou melhor o fez, você é doido, respondeu Bárbara, você é doido mas eu gosto. E aí está ela, já passa das oito, as sentinelas não sabem o que fazer. Sebastião vem à porta d’armas, ei-la dentro do quartel. Já estão numa saleta ao lado do gabinete do comandante, a esta hora não entra ninguém, pelo sim pelo não Sebastião dá uma volta à chave.
Ela começa a desembrulhar uns bolos, mas ele nem lhe dá tempo, encosta-a à parede. Quero a tua boca, diz-lhe, levantando-lhe a saia.
- Aqui não
- Nem que fosse na boca de um canhão
Já ela se abandona, arqueia-se, descai um pouco. Isto é loucura, consegue dizer ainda, mas já Sebastião está dentro dela.
- Amor, amor - diz Bárbara, como quem soluça, como quem morre.
Agora estão sentados no chão contra a parede, Sebastião fuma, ela tem a cabeça poisada no ombro dele.
- Um dos meus amigos ficou sem um perna, aquele que veio comigo no avião, fui hoje vê-lo ao hospital.
Bárbara pega-lhe na mão.
- É o Jorge, jogava na Académica, também esteve em Alcácer, quer dizer, tem o nome de um que lá foi e voltou de muletas, Jorge Albuquerque Coelho, se calhar repete-se tudo, andamos em círculo.
- Amor
- Sim
- Gosto muito de si, você nem sabe
- Como é que é?
- Tudo, você entrou sem pedir licença
- Você também não se fez rogada
Ela ri.
- Você quando ri, vai-se
- E o que é que queria, que fosse ao contrário?
E ri-se ainda mais.
- Estava escrito
- Talvez, tenho a impressão de que está tudo escrito, chego a sentir-me a personagem de um história que alguém há-de contar.
- Todos nós somos personagens em busca de autor
- Isso é bonito, é um tema de Pinradello
- É um tema de vida
- Como é que vai ser?
- Não se pode perguntar ao autor, o que for se verá
- Um dia deste você vai-se embora
- Mas volto
- E eu sou capaz se estar no mato
- Eu vou lá ter consigo
Bárbara ri, dá-lhe um beijo, encosta-se mais a ele.
- Não sei se diga
- O quê?
-Uma coisa
- Diga lá
- Gostava de ter um filho teu
Sebastião agarra-lhe a cara com as mãos, inclina-lhe a cabeça, puxa-lhe os cabelos para trás, quase até magoar.
- Apetece-me fazê-lo já, gosto tanto de ti que até me dói, deve ser por isso que os homens batem nas mulheres.
- Bate – diz ela
Ele morde-lhe a boca, o peito, as coxas, entra de novo nela, com raiva quase, com desespero, rolam pelo chão, ora está um por cima ora está outro, agora é Barbara, atira a cabeça para trás, o que sobe por ela é quase insuportável, vai para gritar, Sebastião tapa-lhe a boca, ela morde-lhe a mão, é a dor impossível de não ser só um, derramam-se um no outro, o fogo apaga-se com fogo
- És o meu homem – diz ela ainda
E assim ficam abraçados em sua glória.


Excerto do cap. XXI de Jornada de África, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1989
Imagem: Sandra Bierman - the seduction of eve

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