12.5.07

Poesia de ODES



À LUA

Lua passada de moda,
Velha roda
Da fortuna dos poetas!
Dessa fortuna inconstante
Que tem o quarto minguante
No caixilho das selectas.

A vida já te não olha,
A terra já te não quer!
Desce luz a cada folha,
Mas é do sol, se ta der...

Musa fria!
Solidão de menopausa...
Poesia
Com rima e com melodia,
Mas sem causa!

Que importa o charco a brilhar,
Se é mentira?
Se a razão há-de acordar
O menestrel a sonhar
E a corda tonta da lira?

Velha lua...
Prostituta poder e nua
À porta de um bordel...
Muda as rugas da face,
Mas a velhice renasce
Do musgo da tua pele!

Bem sei que na fase nova
Podes ter um namorado...
Uma ilusão que te prova
Como a um fruto da renova
De um pomar que foi podado...

Remendos de mocidade.
Lume que acende e não dura.
Não regressa a virgindade
A quem, corrupto, a procura.

Mas tens ainda maneira
De te salvar, velha amiga:
É morrer numa fogueira
De ironia verdadeira
Que algum Poeta te diga...


AOS POETAS

Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos.
Nós, a tribo de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.

E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.

Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva Verdadeiras.
Homens da torre de Babel.

Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.


A ORFEU

Das tuas mãos divinas de Poeta
Herdei a lira que não sei tanger;
Por eleição ou maldição secreta,
Tenho uma grade para me prender.

Cercam-me as cordas, de emoção,
Versos de ferro onde me rasgo inteiro.
Mas, do fundo da alma e da prisão,
Obrigado, meu Deus e carcereiro!


À POESIA

Vou de comboio...
Vou
Mecanizado e duro como sou
Neste dia;
- E mesmo assim tu vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!

Vão homens a meu lado distraídos
Da sua condição de almas penadas;
Vão outros à janela, diluídos
Nas paisagens passadas...
E porque hei-de ter eu nos meus sentidos
As tuas formas brancas e aladas?

Os campos, imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos às montanhas;
O mar protesta contra não sei o quê;
E eu, movido por ti, por tuas manhas,
A sonhar um painel que se não vê!

Porque me tocas? Porque me destinas
Este cilício vivo de cantar?
Porque hei-de eu padecer e ter matinas
Sem querer acordar?

Porque há-de a tua voz chamar a estrela
Onde descansa e dorme a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto teu
A harmonia me fira?

Poeta sou e a ti me escravizei,
Incapaz de fugir ao meu destino.
Mas, se todo me dei,
Porque não há-de haver na tua lei
O lugar do menino
Que a fazer versos e a crescer fiquei?

Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que visse padecer,
E não visse...

Alguém que fosse pelo dia fora
Neutro como um rapaz
que come e bebe a cada hora
Sem saber o que faz...

Alguém que não tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
e coisas de escrever e de exprimir...
Alguém que se deitasse
No banco mais comprido que vagasse,
E pudesse dormir...
Mas eu sei que não posso.
Sei que sou todo vosso,
Ritmos, imagens, emoções!
Sei que eu jurei amor à minha dama,
À mágica senhora das paixões.

Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão;
Aqui vou de longada;
Mas aqui estou, e aqui será louvada,
Se aqui mesmo me obriga a tua mão!


À BELEZA

Não tens corpo, nem pátria, nem familia,
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.

És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.

És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.

És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.

És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço...
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.


A BACO

Vou-te cantando, Baco!
Não pela colheita de hoje, que é pequena,
Mas pela de amanhã, muito maior!
Vou-te pondo nos cornos estas floras,
Que não querem ser líricas nem puras,
Mas humanas, sinceras e maduras.

Vou-te cantando, e vou cantando o sol,
A terra, a água, o lume e o suor.
Vou erguendo o meu hino
Como levanta a enxada o cavador.

Lá nesse Olimpo em geios,
Único Olimpo etéreo em que acredito,
Aí me prosterno, rendo e te repito
que és eterno,
Mais do que Deus e mais do que o seu mito.

Beijo-te os pés - os cascos de releixo;
Olho-te os olhos de pupila em fenda;
E sabendo que és fauno, ou sátiro ou demónio,
Sei que não és mentira nem és lenda!

Dionisio do Douro!
Pêlos no púbis como um homem,
Calos nas mãos ossudas!
E bêbado de mosto e do claro dia.

Cachos de alvarelhão de cada lado
Da marca universal da natureza.
Ela, roxa e retesa
Como expressão da vida.
A beleza
Sempre no seu lugar, erguida!

E folhas de formosa pelos ombros,
Pelos rins, pelos braços,
Por onde a seiva rasga o seu caminho.
E a cabeça coberta
De cheiro a sémen e a rosmaninho.

Modula a sensual respiração
Do arcaboiço fundo do teu peito
Um flauta de cana alegre musical.
E és humano,
Quanto mais és viril e animal!

Eis os meus versos, pois, filho de Agosto
E dos xistos abertos.
Versos que não medi, que não contei,
Mas que estão certos
Pela sagrada fé com que tos dei!


Poesia extraída de Odes, Coimbra Ed. do Autor, 1946, 4ª ed. 1977
imagem:Fátima Joaquim

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