9.1.08

Manuel Alegre



28.

Cão bonito, dizia eu, em momentos raros. E era um acontecimento lá em casa. Os filhos como que se reconciliavam comigo, minha mulher sorria, o cão começava por ficar surpreendido e depois reagia com excesso de euforia, o que por vezes me fazia arrepender da expressão carinhosa.

Cão bonito. E ei-lo aos pulos, a dar ao rabo, a correr a casa toda.

Digamos que aquele cão era quase um especialista nas relações com os humanos. Tinha o dom de agradar e de exasperar. Mas assim que eu dizia – cão bonito – ele não resistia. Deixava-se dominar pela emoção, o que não era vulgar num cão que fazia o possível e o impossível para não o ser.

Mas faça-se justiça: sempre partilhou as nossas alegrias e as nossas tristezas. Estou a vê-lo no dia do funeral do meu pai. Quando viemos do cemitério ele correu a casa toda, percebeu que havia uma falta, ou talvez sentisse uma presença que nós já não sentíamos.

Subiu escadas, desceu escadas, entrou e saiu de cada sala, deu voltas ao jardim, tornou a correr a casa toda. Até que de repente parou e foi enroscar-se, como sempre, aos pés do meu pai, quero dizer, em frente da cadeira vazia onde o meu pai costumava sentar-se. Ou talvez para ele a cadeira não estivesse assim tão vazia.

- Ele está a sentir o avô, disse o meu filho mais velho.

E talvez fosse verdade. Talvez para ele o meu pai estivesse ali. Talvez ele estivesse mesmo deitado aos seus pés. Talvez o meu pai lhe estivesse a fazer uma festa, o que era um facto verdadeiramente excepcional. E talvez só ele a sentisse. Não víamos o que ele via e não sabíamos o que ele sabia.

29.

(É possível que o meu pai também ande por aí. Às vezes sinto-o dentro de mim, ele apodera-se dos meus próprios gestos, entra no meu andar, não é a primeira vez que a minha irmã diz: Pareces o pai. Mas não sei se ela sabe que a cadeira do pai vazia não está vazia, há nela uma ausência sentada e agora, sempre que vamos a Águeda, há, a seus pés, outra ausência enroscada)


Excerto de Cão como Nós, Publicações Dom Quixote, 2002

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