6.5.08

Luís Quintais



Deveria ter feito da minha música um amor mais silencioso
como se de uma arte se tratasse.

A ti, a quem falo de poesia, a ti
que assistes ao desenrolar de qualquer coisa que não compreendes,
respondo-te que também eu não compreendo,
que não há que compreender,
porque nada nos condena à fala
antes que as palavras aconteçam.

Por exemplo, esse poema começado numa manhã de Junho
e nunca terminado: um principio de verão,
a janela que dá para o alcatrão sem tráfego serpenteando pelas colinas.
A rua de dia de semana
e o arquipélago da solidão despertando
para as poucas coisas que procuro
e que o poema irá entretecer
se entretecer. –
A virtude que, cega,
vai conhecendo o seu caminho.

Desprende-se um fio luminoso da impossibilidade das palavras,
e se ficamos tristes não era para ficarmos,
pois não existem momentos irrepetíveis.
Eles aninham-se no sangue
e voltam a mergulhar-nos na experiencia:
Um dia de verão, um bosque, colinas
onde a serpente de alcatrão se enrola.
a ausência de tráfego como motivo.

A pouco e pouco vou recuperando a gravura.
Agora sei que havia uma ave sobre as colinas,
pois há sempre uma ave, ou sombra dela,
nos meus poemas. Que havia água,
o cheiro das inusitadas chuvas
pela manhã de Junho.

O rumor da imagem colado aos dedos.
O ocre escuro das areias espalhado na mesa
é um símbolo da infância,
mas não o reconheço ainda.

O poema é a enumeração que não teve lugar,
que nunca terá. Eu, à beira do fracasso,
não o reconheço ainda.
Enquanto isso tem lugar em mim o advento
do que me define,
e o barro de que sou feito coze por dentro



De Imprecisa Melancolia, Editorial Teorema, 1995
imagem:erica shires

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