6.5.08

Maria Gabriela Llansol



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Não. O que procuro é ver onde a continuidade do há se fractura, onde muda de registo e de sinais, e se há possibilidade de o dizer sem esperança, nem impostura. «Sem esperança», quer dizer sem ilusão garantida. Quando nos apercebemos que o há é há, não somos só parte dele. Acrescentamos-lhe um ver criador_____criamos, modificando-lhe a paisagem. Nenhum traço se perde, mesmo que tenda a apagar-se. O que hoje me cabe é ver sinais, e projecta-los com toda a força de impacto de que dispuser. Sobrepondo-os e entendendo as consonâncias que desenvolvem entre si. Deixar-me orientar pelo sentido melódico que lhes ouço e aceitara significação ou senso que resulta, se resultar. Recomeçar o ver todos os dias, tentar que a energia me gasta me dê mais energia, procura-la nos filamentos mais ténues do real que tenho à mão, não recear servir-me do estranho que o meu corpo sente e pensa.
Esse estranho é somente um efeito da linguagem do cinismo positivista em que fui criada. Ver é fazer e desfazer. É criar linguagem. E criar-me. Tornar-me um «puzzle» onde um dia se desenha um labirinto, outro dia um morro elevado da paisagem, outro dia um quarto escuro fracamente iluminado pelos ruídos exteriores, outro dia um corredor de amor sereno que atravessa a rua onde se ouvem passos de cavalos por entre melodias e batidas de rock. Não perder o fio, sem ter a obsessão ou a angústia de o perder. E, na hora em que o há se fractura, deixar-me ir, ver onde sou levada, retomar a corrente, aceitar mudar de forma e, a partir dela, reaprender a ver. Nessa hora, dar a mão e sentir as figuras. Horas há em que seremos pura vontade______puro amor do há.


Excerto de a confidencia de uma rapariga que saiu do texto, em Inquérito às Quatro Confidências – Diário III, Relógio D´Água Editores, Novembro de 1996
Imagem: Mirko Barone

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