7.5.08

O Crime do Padre Amaro (excerto)




[...]

- Ó filha, toca o Adeus! recomendava a S. Joaneira começando a sua meia.
E Amélia, ferindo o teclado:

Ai! adeus! acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado...

A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro soprando o fumo do cigarro, sentia-se todo enleado num sentimentalismo agradável.
Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha- se então a ler os Cânticos a Jesus, tradução do francês publicada pela sociedade das Escravas de Jesus. É uma obrazinha beata, escrita com um lirismo equívoco, quase torpe - que dá à oração a linguagem da luxúria: Jesus é invocado, reclamado com as sofreguidões balbuciantes de uma concupiscência alucinada: "Oh! vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero! Abrasa-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possui-me! " E um amor divino, ora grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama assim em cem páginas inflamadas onde as palavras gozo, delícia, delírio, êxtase, voltam a cada momento, com uma persistência histérica. E depois de monólogos frenéticos de onde se exala um bafo de cio místico, vêm então imbecilidades de sacristia, notazinhas beatas resolvendo casos difíceis de jejuns, e orações para as dores do parto! Um bispo aprovou aquele livrinho bem impresso; as educandas lêem-no no convento. É beato e excitante; tem as eloqüências do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em marroquim e dá-se às confessadas; é a cantárida canônica21!
Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aqueles períodos sonoros, túmidos de desejo; e no silêncio, por vezes, sentia em cima ranger o leito de Amélia; o livro escorregava-lhe das mãos, encostava a cabeça às costas da poltrona, cerrava os olhos, e parecia-lhe vê-la em colete diante do toucador desfazendo as tranças; ou, curvada, desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria os dois seios muito brancos.
Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal de a possuir.
Começara então a recomendar-lhe a leitura dos Cânticos a Jesus.

- Verá, é muito bonito, de muita devoção! disse ele, deixando-lhe o livrinho uma noite no cesto da costura.


Ao outro dia, ao almoço, Amélia estava pálida, com as olheiras até o meio da face. Queixou-se de insônia, de palpitações.


- E então, gostou dos Cânticos?

- Muito. Orações lindas! respondeu.


Durante todo esse dia não ergueu os olhos para Amaro. Parecia triste - e sem razão, às vezes, o rosto abrasava-se-lhe de sangue.

[…]




excerto de O Crime do Padre Amaro, 15º ed., 2000, Àtica Edições
Imagem: Childe Hassam - 1859-1935

Sem comentários: