7.5.08

O Rapaz de Bronze (excertos)

[...]

Ora um dia naquele jardim nasceu um gladíolo ainda mais mundano do que todos os outro gladíolos.
Quando começou a abrir a sua primeira flor estava o jardineiro a colher gladíolos.

- Vamos para uma festa - disseram os gladíolos colhidos, que estavam em molho dentro de um cesto.

- Que inveja! - disse o Gladíolo.

E foi a sua primeira palavra.

Em seguida, enquanto o jardineiro se ia embora com o cesto cheio de gladíolos cortados, o Gladíolo olhou para si próprio e pensou:

- Sou um gladíolo!

Depois, olhou para as outras plantas e disse:

- Bom dia, minhas caras amigas.

- Bom dia, bom dia - responderam as flores e as plantas.

- Os gladíolos - disse a glicínia - estão na moda. Estão sempre a ser colhidos. Ainda são mais colhidos do que as rosas e os cravos. Nós nunca somos colhidas porque somos muito difíceis de pôr numa jarra.

O Gladíolo, a partir desse momento, compreendeu que havia duas espécies de flores: as que são colhidas e as que não são colhidas. E pensou:

- Que sorte eu ser um gladíolo! Que sorte eu estar à moda, que sorte eu ir ser colhido!

E pôs-se a arrumar bem as suas flores.

Mas daí a dias o Gladíolo teve um desgosto: a dona da casa veio de manhã ao jardim e disse ao jardineiro que estava a podar o buxo:

- Não quero que colhas mais gladíolos este ano. Estou farta de gladíolos. em todas as festas onde vou só há gladíolos.

- Bem - disse o jardineiro. - Não colho mais gladíolos este ano.

- Que tristeza, que raiva, que pouca sorte! - pensou o Gladíolo muito zangado. Mas resolveu consolar-se.

[...]

À noite foi à estufa visitar a Orquídea e a Begónia. Na véspera tinha lá estado a despedir-se.

Tinha dito com ar importante.

- Queridas amigas, venho despedir-me porque me parece que amanhã devo ser colhido.

De maneira que a Begónia e a Orquídea ficaram muito espantadas quando o viram aparecer.

- Então não foste colhido? - Perguntaram elas.

- Não, a dona da casa acha que os gladíolos fazem muito falta no jardim e deu ordem ao jardineiro para não os cortar.

- Óptimo - disse a Orquídea - íamos sentir muito a tua falta.

- Já estávamos cheias de saudades - disse a Begónia.

- No fundo - disse a Orquídea - será bom ser colhido?

Então começaram os três a discutir e foi uma conversa muito demorada e muito filosófica mas não chegaram a conclusão nenhuma.

Por fim o Gladíolo cansado de filosofias despediu-se. Foi andando pelos caminhos sob a luz do luar. No fundo do seu coração continuava cheio de pena de não ter sido colhido. Passou perto da casa e parou.

- Vou espreitar a casa - pensou ele - o jardineiro disse que hoje havia visitas.

E aproximou-se de um carvalho antiquíssimo cuja vasta ramagem quase tocava nos muros da casa. Pelas janelas abertas e iluminadas saía a música que se espalhava e flutuava no jardim como um perfume.

- Olá, gladíolo - disse o Carvalho - então ainda não te colheram?

- Não - respondeu o Gladíolo - não posso ser colhido; faço falta no jardim.

- Vieste espreitar a festa? - perguntou o Carvalho.

- Vim, mas daqui vejo pouco.

- Se quiseres podes sentar-te nos meus ramos - ofereceu o Carvalho.

- Obrigada - disse o Gladíolo - aceito o convite.

[..]



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Excertos de O rapaz de Bronze, ed. Nº 20, Edições Salamandra, 1996

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