26.1.09

Fernando Pessoa




(Acróstico de Fernando Pessoa dedicado a Ophélia)


Onde é que a maldade mora
Poucos sabem onde é
Há maneira de o saber
É em quem quando diz que chora
Leva a rir e a responder
Indo em crueldade até
A gente não a entender

Nota: Relato da Exma Senhora Dona Ophélia Queiroz, destinatária destas Cartas de Fernando Pessoa, recolhido e estruturado por sua sobrinha-neta Maria da Graça Queiroz.


Um dia faltou a luz no escritório. O Freitas não estava e o Osório, o «grumete», tinha saído a fazer um recado. O Fernando foi buscar um candeeiro de petróleo, acendeu-o e pô-lo em cima da minha secretária.
Um pouco antes da hora de saída, atirou-me um bilhetezinho para cima da secretária, que dizia: «Peço-lhe que fique». Eu fiquei, na expectativa. Nessa altura já eu me tinha apercebido do interesse do Fernando por mim, e eu confesso, também lhe achava uma certa graça...
Lembro-me que estava em pé, a vestir o casaco, quando ele entrou no meu gabinete. Sentou-se na minha cadeira, pousou o candeeiro que trazia na mão e, virado para mim, começou de repente a declarar-se, como Hamlet se declarou a Ofélia: «Ó, querida Ofélia! Meço mal os meus versos; careço de arte para medir os meus suspiros; mas amo-te em extremo. Oh! até do último extremo, acredita!»
Fiquei pertubadíssima, como é natural, e, sem saber o que havia de dizer, acabei de vestir o casaco e despedi-me precipitadamente. O Fernando levantou-se, com o candeeiro na mão, para me acompanhar até à porta. Mas, de repente, pousou-o sobre a divisória da parede; sem eu esperar, agarrou-me pela cintura, abraçou-me e, sem dizer uma palavra, beijou-me, beijou-me apaixonadamente, como louco.
Surgem assim os primeiros versos que me dedicou; versos que infelizmente depois me desapareceram, mas que nunca esqueci:


Fiquei louco, fiquei tonto,
Meus beijos foram sem conto,
Apartei-a contra mim,
Enlacei-a nos meus braços,
Embriaguei-me de abraços,
Fiquei louco e foi assim.

Dá-me beijos, dá-me tantos
Que enleado em teus encantos,
Preso nos abraços teus,
Eu não sinta a própria alma, ave perdida
No azul-amor dos teus céus.

Boquinha dos meus amores,
Lindinha como as flores,
Minha boneca que tem
Bracinhos para enlaçar-me
E tantos beijos p'ra dar-me
Quantos eu lhes dou também.

Botão de rosa menina,
Carinhosa, pequenina,
Corpinho de tentação,
Vem morar na minha vida,
Dá em ti terna guarida
Ao meu pobre coração.

Não descanso, não projecto,
Nada certo e sempre inquieto
Quando te não vejo, amor,
Por te beijar e não beijo,
Por não me encher o desejo
Mesmo o meu beijo maior.

Ai que tortura, que fogo,
Se estou perto d'ela é logo
Uma névoa em meu olhar,
Uma núvem em minha alma,
Perdida de toda a calma,
E eu sem a poder achar.


Fui para casa, comprometida e confusa. Passaram-se dias e como o Fernando parecia ignorar o que se havia passado entre nós, resolvi eu escrever uma carta, pedindo-lhe uma explicação. É o que dá origem à sua primeira carta-resposta, datada de 1 de Março de 1920.



Assim começámos o «namoro».


--------------------------------------------------------------------------------

carta 1


Ophéliazinha:

Para me mostrar o seu desprezo, ou pelo menos, a sua indeffrença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da serie de «razões» tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-m'o. Assim, entendo da mesma maneira, mas doe-me mais.
Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Opheliazinha pode preferir quem quizer: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem, realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.
Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as cousas, nem trata os outros como réus que é preciso «entalar».
Porque não é franca comigo? Que empenho tem em fazer soffrer quem não lhe fez mal - nem a si, nem a ninguém-, e quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa de que lh'a venham accrescentar creando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe affeições fingidas e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.
Reconheço que tudo isto é comico, e que a parte mais comica d'isto tudo sou eu. Eu-proprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra cousa que não fosse não fosse no soffrimento que tem prazer em causar-me sem que eu, a não ser por amál-a, o tenha merecido, e creio bem que amál-a não é razão bastante para o merecer. Enfim...

Ahi fica o «documento escripto» que me pede. Reconhece a minha assinatura o tabelião Eugenio Silva.


1.3.1920

[Primeira carta de Fernando Pessoa à Exma Senhora Dona Ophélia Queiroz]


Ler mais sobre o autor em nEscritas


Cartas de Amor de Fernando Pessoa, Edições Ática, Lisboa 1978
posfácio e notas de David Mourão-Ferreira, Preâmbulo e
estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz
Imagem: Columbano Bordalo Pinheiro, 1857-1929
1912, óleo sobre tela150 x 130 cmMuseu do ChiadoLisboa, Portugal

Sem comentários: