27.2.09

Jorge Sousa Braga




Adormecer num colchão de molas ao lado da primavera
e acordar do lado do verão
Atirar-se da janela do quinquagésimo andar
e aterra intacto na folha de um nenúfar
Passar a cem à hora todos os sinais vermelhos
e estancar repentinamente no primeiro sinal verde
Engolir um Mirage e vomitar em seguida
dois milhões de pássaros pela boca
Fornicar sucessivamente com uma elefante-fêmea
uma galinha-da-índia um colibri e uma borboleta
Destruir a pontapé todas as palavras do dicionário
até chegar à palavra chumbo
Estender a língua vermelha na pista do aeroporto
para servir de tapete a uma estrela de Hollywood
Cortar os braços a todos os prisioneiros e gritar «mãos no ar»
antes de os passar pelas armas
Derrotar todos os exércitos do nascente
e sucumbir ao ser atacado pelas costas por uma folha de Outono
Comer à sobremesa apenas maças marca Cézanne
Assistir ao próprio enterro ao volante de um BMW cor de cinza
e chorar lágrimas verdadeiras
Descobrir uma caravela naufragada há quinhentos anos no fundo dos
teus olhos
e conseguir trazer para a superfície duas estátuas de Buda além de uma
tonelada de pimenta e outra de cravo
Passar cinco anos na solidão de uma cidade de dez milhões de
habitantes
e experimentar depois o bulício das Penhas Doiradas
Entrar num supermercado e plantar um limoeiro na secção das
vitaminas
Recuar alguns séculos no tempo
para apanhar nas mãos a cabeça de Maria Antonieta
Lavar as mãos em sangue antes de assinar o tratado de paz



Adormecer ao lado da primavera, cap. III- Boca do Inferno, de O Poeta Nu, Assírio&Alvim
Imagem: Vandx

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