28.2.09

Lídia Jorge



A casa que nos coube em sorte fica mergulhada em flores. Aqui estamos desde ontem. Quando chegamos não vimos paredes, apenas um telhado pousado sobre plantas e uma entrada em madeira sobraçada por um arco de hera. As flores são azuis e rosa, a unir as duas cores, a buganvília lilás sobe pelas empenas laterais, formando dois ramos, um de cada lado. Neste ninho de frescura, contamos ser felizes por dez dias. Garantiram-nos que quem vive ao lado é gente pacífica, casa térrea, residência própria de uma família local. Estamos separados deles por uma vedação de ferro, devidamente enfeitada de vinha virgem, e em frente das suas portas, onde nós temos os tufos de plantas, têm eles uma tanque de rega para onde pendem duas árvores frondosas. Faço questão de descrever o espaço. Sobre este caderno sou livre de desarmonia, nele exerço sem complexo os meus vícios de visão pura. Mas não posso aguardar mais. Foi assim.

Esta manhã, os rapazes que vieram para a manutenção da piscina não paravam de interromper o trabalho para dirigirem o olhar para a casa ao lado, e a casa ao lado tinha as portas trancadas. O técnico que veio acertar a parabólica ficou longo tempo sobre o telhado, a mirar na direcção da casa vizinha. Diante da casa, carros passavam devagar, uma carrinha branca parava, arrancava, parava de novo. E pelas quatro da tarde, uma pessoa da agência alugadora veio informar-nos de que sentiam muito, mas estava fora do controlo dos serviços, o problema que se passava na vizinhança. Pois que problema?
Então a rapariga da agência – porque se tratava de uma mulher bem jovem – começou por dizer que ia para ai oito dias que factos estranhos ocorriam ao lado.
Ela mesma não tinha presenciado, mas constava que sobre as pessoas daquela moradia, sem se saber porquê, estavam a cair pedras vindas não se sabia de onde. Pequenas pedras que atingiam as pessoas no corpo, incluindo o rosto, e que ora provinham de cima, como se fossem atiradas por alguém que se encontrasse nas arvores, ora pareciam saídas do próprio chão. De vez em quando, caíam sobre a água, sobretudo quando os filhos do proprietário se encontravam a brincar no tanque. Uma grande maçada. A rapariga da agência que assim falava, estava seria. Uma bela moça, modernamente vestida, a olhar para nós seis, reunidos à sua volta no meio do tufo de flores, para escutarmos a saga das pedras que trazia até nós, para nos pedir compreensão pelo alvoroço que ao lado se poderia gerar, e para nos informar também que até aquele momento, era mesmo só no perímetro daquela outra casa, e daquele outro quintal, que as pedras eram arremessadas.
“Pedrinhas” – explicou ela. “Às vezes pedras de brita, ou mesmo gravilha das estradas, a avaliar pelo que a agencia testemunhou. Quando soubemos desta situação, fizemos questão de vir verificar o local. Mas outras vezes as pedras eram maiores, parecem trazidas de longe, extraviadas de valados da região. Incrível, não é?”
Como disse, a funcionária parecia-nos uma pessoa razoável, ela mesma estupefacta e incrédula, até um pouco humilhada pela incumbência que desempenhava. Referia que o próprio patrão, duas noites atrás, tinha andado com outros homens, todos munidos de lanternas, à procura de brincalhões que atiravam pedras, mas não só a busca tinha sido infrutífera, como enquanto decorria, uma das residentes havia sido atingida nas costas, no momento em que saíra à rua para ir buscar roupa ao estendal. Uma perseguição até agora inexplicável. A rapariga da agência falava com uma gravidade própria de quem é obrigado a oferecer aos outros uma inquietação despropositada. E certamente para se salvar a si mesma da inverosimilhança do que nos vinha contar, referiu a amplitude social que os factos haviam tomado. Vários jornais já se tinham interessado pelo assunto. No dia anterior, duas carinhas de reportagem de televisão tinham vindo literalmente abancar diante da casa. Um dos repórteres até havia usado uma teleobjectiva para tentar captar o rosto de algum dos moradores. Mas as pessoas atingidas encontravam-se trancadas por dentro, sem quererem dar a cara, por acharem que o assunto era demasiado sério para ser badalado de qualquer forma.
“E as pedras magoam?” – perguntou um de nós.
A rapariga da agência sorriu – “Até agora, parece que não feriram ninguém. Dizem que mesmo as maiores, como a que atingiu a mulher mais velha no peito, ou mesmo o punhado de gravilha atirada contra a cara de um dos miúdos, quando se encontrava a nadar no tanque, parece que nunca fizeram doer. Não é incrível?”
“É incrível” – disse um de nós.
“Eu também acho…” – disse a rapariga da agencia. “O problema é que esta situação pode continuar, a coisa passa-se logo aqui ao lado, e nós ainda não dispomos de outra solução. Mas estejam descansados, vamos encontrar…”
E a rapariga partiu, sobraçando os seus papeis.
Como disse, este encontro aconteceu a meio da tarde. Significa então que devemos começar a desinstalar-nos desta casa de campo? Que tudo aquilo que ainda não saiu dos sacos deve permanecer guardado? Que não devemos começar a estender os fios dos computadores portáteis? A não espalhar os livros e os discos por cima das mesas? – pelo contrário, devemos sim, porque o assunto teve novo desenvolvimento, inesperado.

Pelas sete da tarde, encontrávamo-nos junto à sebe que separa as duas casa, a olharmos, nós também, para o condomínio suspeito, quando duas adolescentes saídas das traseiras da moradia vizinha se nos dirigiram. Vinha, descalças, embrulhadas em toalhas claras. Chamaram-nos – “Eh! Queremos dizer uma coisa!” deixamos a zona das flores, caminhámos ao seu encontro. Ficámos frente a frente com o gradeamento de permeio. Então a mais alta das duas colocou o rosto entre duas hastes de ferro, e com voz baixa pediu que não tivéssemos medo. Alguém tido ido a Lisboa consultar uma leitora de cristais e havia trazido a devida explicação. Explicações que não iriam dar a ninguém, porque não queriam que tomassem a sua família por parva, mas que nos vinham dizer só a nós, para que não nos mudássemos para outro lugar. Não valia a pena. E o rosto da adolescente resplandecia entra as barras. Mas a mais pequena, mais nova, enervada com a delonga da irmã, deu um salto, com a toalha às costas, e explicou, aos solavancos, como se não tivesse tempo para terminar – “Ficamos a saber que são almas de crianças que vêm brincar connosco…” Olhou em volta, baixou a voz – “E devem ser muitas crianças porque as pedras vem de todos os lados…os nosso primos tem medo, mas nós duas não, estamos muito contentes. As almas delas gostam de nós…” e como se nos conhecesse de há muito, a rapariguinha deu um grande salto – “Imaginem, tanta piscina por aí, e logo elas gostarem da nossa casa. Invejam brincar connosco no nosso tanque, gostam da nossa água com limos…até já pensamos que, se calhar, dormem aí desse lado, entre as flores, e saltam a grade para virem brincar connosco…Mas nós não vamos contar a ninguém, como diz a minha irmã, para não tomarem a nossa família por parva…Por favor, não mudem de casa. A nossa avó também diz que são crianças, que rapidamente se vão cansar. Dum momento para o outro podem não voltar mais…” – disse a adolescente mais pequena, mais viva. “E agora vamos! Eh! Pirar!” E ela mesma se desembrulhou da toalha, antes da irmã, e correu na direcção do tanque. A irmã seguiu-a, ouviu-se um som na água – Tchap! E a seguir um outro – Tchap!
A moradia mantinha-se trancada. As duas árvores frondosas guardavam-na. Três garotos juntaram-se às adolescentes a chapinhar na água produzindo o ruído das rãs no charco. Isso, no declinar da tarde.

Agora já é noite. Ia até dizer agora já é noite fechada, cumprindo os lugares comuns, mas é falso. A noite que se encontra diante de nós está aberta, um quarto-crescente luminoso brilha sobre esta parte da terra, espalhando um luar pálido, e nós seis, do lado de cá, de costas para as flores, estamos sentados em frente da vedação, de rosto virado para a casa assombrada, na esperança rara de que uma brecha se abra no tecto da tenda que separa a física da realidade, e uma pedra, arrancada da origem do próprio espaço, atravesse o ar. Minto, neste momento, são cinco as cadeiras ocupadas deste lado da nossa casa. Eu vim para o quarto escrever estas linhas, para que este momento não acabe mais.

Boliqueime, 27 de Agosto, 2004


Casa de Campo em Contos que Contam
Imagem: Julian Hill

Sem comentários: