28.5.09

Valter Hugo Mãe


clarinha sentia-se feliz consigo mesma mas, para ser todavia feliz, pensou em nunca se entregar a um homem. encostada à parede da sua casa, como estava quando o sol se pôs, decidiu conservar para sempre aquela calma, um sossego em cada coisa, cada coisa sob sua decisão e só a si obedecendo. dizia, no entanto, que era mulher de muita mantença, era expressão de dizer que muito lhe faltava e lhe dava avidez de o conseguir. sim, a cada dia lutava por quanto lhe aprouvesse, numa satisfação bastante, porque se bastava com muito e sentia até orgulho nisso. e mais dizia, não me abédece comer sono, sou mais dada a estar acordada e sustentar-me das boas ideias da terra. os morangos eram das melhores ideias que a terra podia ter, e clarinha deitava-lhes açúcar e engordava à força de tanto os comer. e voltava a dizer, a mim só me abédece isto, quilos de morangos a embelezarem-me os interiores. depois, fechava a boca gulosa, sorria, e ficava bojuda de sol, tanta luz irradiava da sua satisfação. por afastar os homens era, a cada passo, tratada como louca. achavam as pessoas que ser mulher de nenhum homem era como não ter tecto, não ter dinheiro, não ter comida, não ter cérebro, não ter vida, era mesmo como não ter vida nenhuma de todo. clarina passava por toda a gente com ar de quem não queria saber, o nariz empinado de desprezo, para não ter necessidade de explicação. seguia caminho e fazia as suas tarefas como surda. muitas vezes que lhe falava sobre o assunto não o fazia por mal. fazia-o por não se aperceber de que a solidão poderia aconchegar as almas mais perfeitas. pois, pensava clarinha, isso mesmo, que teria a alma muito perfeita, assim capaz de ser atendida pelo mais tangível do corpo. uma alma ao alcance do corpo, pensava só pode ser privilégio de que está muito escolhido pela natureza.

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Excerto do conto – os campos de velho - inserido no livro O Prazer da Leitura, edição conjunta da Fnac e Teorema por ocasião do Dia Mundial do Livro 23 de Abril de 2009.
Imagem: Lowell Herrero

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