29.1.09

Maria Gabriela Llansol



Um desejo oblongo azula, vagamente pressentido, o silêncio da sombra incerta. No quarto, a realidade é a altura, o comprimento e a largura, o espaço limitado ocupado pelos móveis e o tapete.
- Mais um dia morto na nossa casa vazia – disse Inês.
- Dorme. Amanhã começamos a vindima – respondeu Cristina. – Levantamo-nos cedo.
- Tenho sono e não sou capaz de dormir. O luar quase bate na minha cama. Esqueci-me de cerrar as cortinas.
Cristina e Inês estão em face do existir sólido, como um cubo ou como um prisma, sem o qual não seria possível reflectir-se a luz da lua que baloiça, apoiada na janela.
- Levanto-me a cerra-las. Queres?
- Não. Gosto de ver no chão a sombra do caixilho da janela. É uma sombra comprida.
- Parece uma cruz.
- É uma cruz a nossa casa vazia. – Inês lembrou-se de uma cantiga que começava: “Ainda não tinha colhido três ramos quando um rouxinol pousou na minha mão.”
Ao mesmo tempo que a cantiga penetrou-a a amargura de ter herdado a casa, só com as presenças de animais, de objectos e à volta das vinhas onde apenas se alteavam árvores, de distancia, como flechas cravadas perpendicularmente num solo em que sempre recomeçava a monotonia verde.
- Dorme – disse Cristina. – Amanhã os criados vêm cedo. Acordas ainda com sono.
Inês sentia a plenitude do existir inerte: a toalha, o pão na mesa, os pratos com a sopa, as cadeiras, os retratos de coisas irreais porque nenhuma delas acontecera.
Fechou os olhos e emergiu na escuridão que é o silêncio da luz. Para ela, a visão era o sentido primordial na captação da permanência circundante. A sua vida tinha sido uma secessão de percepções pictóricas, em que era possível a visualização de todas as abstracções e até mesmo das realidades apreendidas através dos restantes sentidos. Via que o cheiro tem uma forma, que o som é um gesto e que o tacto tem uma cor. Na infância, ao contemplar um evónimo em que vira uma lagarta transformar-se em borboleta dissera: “Cheira a borboleta.” E o cheiro a borboleta (azul, encarnado, amarelo) existira, criado pelo desejo.
Mas agora, e esse agora projectava-se das noites passadas no presente e prolongava-se, pela apatia do vazio, nas noites futuras, não desejava dormir sobre um dia não acabado.



em A Pedra que não Caiu de os pregos na erva, edições Rolim
Imagem: Guenter Ed

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