28.8.09

Revista ILUSTRAÇÃO



Nunca me abeirei duma cidade sem comoção, como nunca uma aldeia deixou a dar-me a impressão funda de que ali se criaram gentes, agenciadores e perdulários viram a luz primeira, e camadas de costumes se sobrepuseram a outras camadas como veios lenhosos em tronco velho e nodoso. Lembro-me com saudade da minha primeira ida a Porto Martim, aldeia de faiais e vinhas gordas, na ilha Terceira, como recordo a única vez que entrei em Madrid, numa manhã de Abril, passando as cales ao trote das mulas fartas, curiosos de uma terra que me cheirava a mentrasto e me sabia a pimentos. São os meus fastos da memoria predilectos, e se, quando se ligam a cidades grandes, avultam opulentos, vem-lhes mais opulência do jogo humano ligado às altas fábricas, aos monumentos severos e copiosos, aos museus raros, do que ao fausto exclusivo e à arrogância em si mesma. É que as cidades grandes são meros padrões de vida, o fluxo e refluxo das várias marés humanas. São rastos, vestígios; e, numa estrada que circunvalasse a Terra, teriam o arranjo simbólico de muitas pegadas juntas, de légua em légua, com gotas de ocre a marcar o sangue gasto. Cidades velhas, portanto, são para mim quasi todas, aberta a excepção para aquelas que a vida têxtil criou, ou que as faianças, exigidas em dobro por muita boca esfaimada, tiveram que pedir para seu fabrico avultado e em condições seguras. Os burgos industriais são muito novos e feios: não contam.
Em troca, porém, que agrados não se colhem duma terrinha simples, aglomerada ano a ano, espraiada e recomposta apenas de lustro em lustro, ou destes modestos formigueiros que se locomovem sem pressa e dão a crença, de tão pausados, que são anões catalépticos e estendem as pernas uma só vez num século! Ai o trabalho do homem é lento, e, como o cérebro não mexe mais que um molusco, o braço é suficiente, ergue as alfaias com o vagar de um ponteiro.

[…]


Excerto de uma crónica de Vitorino Nemésio inserida no nº5 da revista Ilustração publicada em 1 de Março de 1926.

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