4.9.09

Aquilino Ribeiro





Uma vaga de loucura vai varrendo pelo mundo e, graças, que não é apenas o nosso país, tão mimoso sempre em lunáticos, descobridores do motu-contínuo, salvadores da pátria, homens-macacos, o provado flagelo. Na verdade, sempre uma dose da santíssima e salutar loucura sobrenadou à flor das almas. Mas essa que armou seu paladino o cavaleiro da Triste Figura, que Erasmo celebrou como deusa tutelar dos homens, sumiu-se para dar lugar à outra, atrabiliária, inclemente, filosofal e teológica algumas vezes, vestida, outras, de uniforme. Desabando em avalanche pelos povos, desgraçado de quem não entra no batuque. O memos que lhe pode acontecer é ter tido por doido-varrido, fóssil, e atirado à margem como coisa que nos faz sombra.
Vejam a admirável inconsciência das mulheres! Porque um dia uma cabotina apareceu no palco de cabelos cortados, vá de tosquiar a cabeça como se fazia outrora às atacadas de lepra, e se faz hoje no Aljube e nos hospitais. A seara imensa de lirismo, que brotou da contemplação das tranças de nossa irmã Eva, foi burlescamente ceifada pela tesoira gordurenta do cabeleireiro. Pobres vates que não sonharam o anacronismo ridículo de suas musas! O que supunham ser o enfeite por excelência, o emblema voluptuoso da feminilidade, veio sua alteza reinante a Loucura, e decretou que era um estigma de escravidão, um acessório inestético e empicelhento. Ondas de cabelos louros, de cabelos pretos, enlevo dos amantes, diadema glorioso de uma fronte branca, foram no cisco das carroças para o guano. O que dantes era uma humilhação tornou-se uma vaidade. Esses ex-votos tão ternos, de tranças penduradas à ilharga dos santinhos pelas ermidas dos montes, não mais falarão às nossas madamas a linguagem suavíssima da penitência, mas sim a duma desbragada e tirânica moda. Como eu choro essas cabeleiras que, em catadupa, cobriam Suzana à vista dos velhos libidinosos, a vergonha das noivas ao subir o tálamo na primeira noite, e que as rainhas de Corneille desatavam pelas espáduas em sinal de realeza e heroicidade! Em troca que nos oferece Eva, tomada de modernismo? Umas guedelhas à chien a borrifar as têmporas e a courama duma nuca salpicada de toros de cerda, como presunto cozido, ou mato galego rapado pela roçadoira. Deus lhe perdoe, que na nossa idolatria não encontra perdão.




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excerto de uma crónica de Aquilino Ribeiro publicado na revista ILUSTRAÇÃO de 6 de Junho 1926

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