17.9.09

Teolinda Gersão




O mar era o horizonte mais próximo, e também o mais remoto, desde o começo da infância. A casa a que todos os anos se voltava e de onde sempre de novo se partia, segundo um ritmo, uma lei escondida nas coisas, que ela levara, muito tempo a entender. De repente os dias eram límpidos, leves, cheios de pássaros, nasciam no jardim as hortenses, depois os jarros, depois as beladonas, os vestidos mudavam, o ar era mais quente, mais cheiroso, o céu era muito mais redondo e rasgado, sobretudo quando se olhava do chão, deitado sobre a relvas, e então, sem que soubesse nunca exactamente quando, era a hora de fazer as malas e de ir embora, era sempre um dia que chegava bruscamente, perguntava-se quando e diziam sempre «ainda falta muito», mesmo quando diziam «amanhã» o dia não chegava, e de súbito estava-se dentro do. dia sem o ter sentido aproximar-se, como se tivesse 'saltado’ sem cair entre dois muros, entrava-se no carro e partia-se, no meio de malas, cestos, trouxas de roupa e caixotes cheirando a sabão, Casimira amarra­va o lenço na cabeça, passava para trás e fechava a janela, alisava com as mãos o avental antes de a sentar ao colo, e era sempre Casimira que ainda nessa tarde a levaria á praia com Elisa, ela olharia da praia e poderia distinguir as paredes brancas, a porta, as pequenas janelas — lá estava, lá estava a casa, plantada no Verão. Todas as coisas iguais, recuperadas, porque não havia ainda nenhum intervalo no tempo. Os pés reconheciam as sandálias, como os ouvidos o vento, e o corpo o sabor do mar. Todas as coisas intactas, que de repente voltariam: o nevoeiro entrando pelas fisgas, como um assobio muito fino, o cheiro das manhãs em que chovia, os barcos, todos brancos, sobre o mar. E sobretudo a casa voltaria, idêntica, interior, envolvente, como o peso de dois braços, durante muitos anos voltaria, até que insensivelmente começaria a afastar-se como um barco partindo, e de repente havia uma distância intransponível entre ela e a casa de repente era o último dia e a casa fechava as suas portas, o Verão fechava as suas portas e o deserto crescia em toda a volta, o homem desmanchara a barraca e enrolara os panos, pegou com as mãos nos bonecos e sacudiu-os com força antes de atirá-los ao chão — mortos, de pau, os braços soltos, as saias de folhos desbotadas.

[...]




excerto de Paisagem com Mulher ao Fundo, Edições «O Jornal», 1982
Capa de João Segurado sobre um óleo de João Vaz, Praia.
Colecção de Anastácio Gonçalves (Fotogratia cedida pela Fundação Calouste Gulbenkian)
Imagem: Salih Güler



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