18.1.10

Joaquim Manuel Guimarães




*
O mar dentro da árvore, as nuvens
dentro da terra sem fim,
a luz. A luz dentro doutra luz
que limitava as mãos e as abria
para outras mãos dentro de um olhar.
*
Batem na fornalha os ventos.
Um cálice de vidro grosso com o licor
de fermentação caseira. Um prato
com avelãs e nozes e folhas de medronho.
Nas margens as portadas corridas
ganham um halo de candeeiros de rua
que se difunde na fluorescência do televisor,
na palidez rubra das pequenas luzes do rádio.
*
A última claridade do dia mistura-se
à primeira da noite.
Este vento na auto-estrada onde rebenta a chuva
não me vai forçar o coração; nem estas sebes
ladeadas de cimento suspenderão o voo
do que sou até ao que não és. Mas será
a carícia que no cinto treme, o calor do pescoço
descoberto, os vimes da cadeira donde te levantas
quando estou quase para me sentar.
*
Entre veios de relva desigual,
valados por cuidar abrigam
máquinas de desolação.
Formações de patos atravessam
o vidro polido do postigo.
O dia bate no jornal pousado
sobre a manta castanha que prende
os joelhos no silêncio de interior.
Outras vezes, as persianas já corridas,
um globo de lona ilumina o livro
na pequena mesa, um arame de flores
pendurado numa trave e o armário
com os objectos de estanho e meditação.
*
A vida acumulou-se em roldanas ao redor de tudo,
um fumo que sobe durante a noite sobre os mapas
enrolados na parede despida, há tanto nos esquecemos
de os desdobrar, de por eles chegar aos confins
do nosso mundo. E já estamos a desaparecer.



Que por ti perdi de As Escadas não têm Degraus, Livros Cotovia, 1990
Imagem:Pnina Evental


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