NADIR
A Guardadora de Nadas
23.1.13
Graça Magalhães
Declaro-te
pássaro que me invade
como relâmpago
desarrumo oásis nos olhos
onde flutuam sais de fogo
como quem vê passar
um êxtase de silêncio
um traço de pele
unindo as mãos ao corpo
a boca ao interior dos lábios
o céu dentro de um vestido
flutuam indícios sobre o peito
desarma-se a tremura
nessa forma sublime
um rio
intensíssimo de bátegas
onde tudo acontece
fitas coloridas
medula ardente
o fascínio da pedra
onde se agita o fogo
num ponto de luz.
Esta é a neve maior e eu chamo, A Geografia do Tempo, Palimage
Imagem: gravity circus by armene-d3d9xdo
6.9.12
Isabel de Sá
Usar a liberdade de tudo é ainda evocar a dúvida. O mundo não suporta a extrema delicadeza da fala poética. Mas o instinto gastou o nosso rosto, arrastou-nos para o mal. Nesse tempo, nesse tempo em que fomos amantes, a luz doirada do abismo fez-me cair na tentação. Não esqueço o teu olhar, a treva do teu corpo mergulhado na penumbra.
Ao enfrentar a experiencia daquele que se arruína, meu espirito dissolve-se na contradição. A matéria é carnal e, enquanto estou só, sou alguém que está comigo.
Nesse tempo de O Duplo Dividido seguido de Palavras amantes e Poetas Suicidas; Lisboa, &etc., 1993
Imagem: Deviantart, donjuki
Rosa Alice Branco
Tiro o lume das gavetas. É o primeiro dia
de outono. E os anos que estão no fundo.
Antes não era eu. Era a casa em construção.
Eu antes de mim. Agora desmantelo o verão,
os vestidos que voam, os pés nus ao lado do vestido.
O tempo perde-se na mudança das estações
e nesta perda alguém existe em mim.
Uma voz ri-se no fundo do armário.
O sol tão baixo, na última gaveta.
Casa a meio de Soletrar o dia, obra poética, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edisões, 2002
de outono. E os anos que estão no fundo.
Antes não era eu. Era a casa em construção.
Eu antes de mim. Agora desmantelo o verão,
os vestidos que voam, os pés nus ao lado do vestido.
O tempo perde-se na mudança das estações
e nesta perda alguém existe em mim.
Uma voz ri-se no fundo do armário.
O sol tão baixo, na última gaveta.
Casa a meio de Soletrar o dia, obra poética, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edisões, 2002
Imagem: Willem Haenraets
20.7.12
Armando Silva Carvalho
Velho carro de um velho num país de velhos
Um gato a quem falta já a ousadia acrobata dos telhados
E as unhas de aço nas retraídas patas
De veludo puído.
Já foste um gato de muito foles sem contar
Com o da indiferença.
Contigo aprendi a lisonja no regaço e a redobrada vénia
Dos amantes de serviço.
Os dois sentimos as festas
No pêlo e na pele metafórica dos sentidos
Politicamente correctos.
Não houve fogo que nos queimasse o gozo de estar vivos.
Aqui é o sol do frio que nos faz sorrir
Aos pés da escada. Não te debruces em excesso
Nas rochas do Carvoeiro.
O gato e a água juntos não serão a melhor escolha de acabar.
de O Amante Japonês, Assírio & Alvim, 2008
Imagem: MichelRajkovic
Exposição "Tempos sem Tempo"
A Câmara Municipal de Oeiras apresenta a exposição “Tempos sem tempo”, de Gil Teixeira Lopes e Matilde Marçal, de 13 de Julho a 30 de Setembro, no Centro Cultural Palácio do Egipto, em Oeiras.
Horário: de 3ª feira a Domingo, das 12H às 18H
Encerrado aos feriados
José Mário Silva
Dizias: a poesia não nos protege
nem salva, é só um consolo inútil.
As folhas rasgadas ardiam melhor,
o fogo contorcia as estrofes, brilho
negro o destas cinzas. Dizias: foi
ontem que o anjo me veio arrancar
os olhos, amanhã virá à procura do
coração. Na tua voz, restos de vidro
moído, metal gasto, ferrugem. Lá
em cima as estrelas continuavam
a cintilar, indiferentes. Nenhuma
catástrofe que nos aconteça ficará
registada nos sismógrafos. Dizias:
afinal não há anjo, são só palavras.
de Luz Indecisa, editora Oceanos
Imagem: Jean Fan
21.6.12
Filipa Leal
Na frágil timidez de aves de papel,
balouçando, morrendo a cada queda,
porque houve asas enrugadas,
e um desespero de salitre e ervas aromáticas.
E rasgámos as palavras,
arquivámos o voo como se crescêssemos,
ou tivesse amanhecido devagar.
de Talvez os Lírios Compreendam, Cadernos do Campo Alegre, 2004
Imagem: Barbara Cole
Fátima Maldonado
Quiseste-me e depois foste desmoronando
glóbulo a glóbuloalteraste sistemas rebentando artérias
devassaste lugares
deixando vestígios de razão
como sobram nas neves mais eternas
as latas de cerveja os restos do fiambre
em papéis suados de gordura
é urgente fuzilar inúteis
o que invade e destrói o nosso próprio concentrado
campo
lógicas ordenam e revelam
organizam as cinzas do que não se mede
atrevem-se a manchar
sítios remotos
o que de cada ser faz parte incerta
na deriva real da procura
tentam riscar sagrados hipotálamos
com o ponteiro dos factos
a geometria a que te condenaste
vai encerrando os dados que precisas
para jogos de risco, outras encantações
e sempre mais couraças
inerme comandado por regras brutas
como escamas de aço
suturas bolas de natal
sem perceber que pouco tempo existem
irisadas subitamente estalam.
de Vida Extenuada, & etc, 2008
Imagem: Barbara Cole
12.6.12
José Rui Teixeira
havia uma menina sentada
junto a uma janela
ela vestia uma velha camisa de dormir
larga
e tinha cabelos castanhos lisos
longos
tinha uma caixa de plástico vermelha
no colo
e olhava o horizonte cinzento
ao longe
talvez vivesse numa ilha
e talvez brincasse junto ao mar
nas tardes de verão
ela estava sentada
não sei bem se num banquinho de madeira
ou se num rochedo do tamanho do mundo
às vezes
os seus olhos pousavam suavemente
na caixa vermelha
e os seus pequenos dedos
imprimiam na superfície do plástico
antigas histórias
de gente que não mais voltara do mar
a casa era do tamanho
de uma janela que dá para o mundo
e a madeira cheirava a madeira
e alguma coisa nela me dizia
que outrora fora barcos
nenhum entardecer
se assemelhava ao que habitava
aquela janela
e a menina sabia-o
não sei bem como
os seus olhos cinzentos
olhavam o horizonte
com a paciência
de quem olha os horizontes
e por vezes
esticava o pescoço
para ver mais longe
ela descobrira sozinha
o significado da palavra longe
o tempo era
verdadeiramente
algo indistinto
e os cabelos
acariciados pela tempestade
gritavam
aos olhos mais atentos
a palavra eternidade
sempre que abria as mãos
caíam ao chão
punhados de terra
ainda misturada com raízes
e no seu colo pousava
aquela caixa vermelha de plástico liso
como uma mancha de sangue
no branco sujo
da camisa de dormir
de vez em quando
cantava
melodias tristes
que ela ouvira
certamente
da boca dos mortos
que escolheram aquele lugar
para olhar o horizonte
um dia
alguém vindo do mar
dissera-lhe ao ouvido
a palavra infinito
e ela rira
ria sempre
que alguém dizia
infinito
desde então
passava noites inteiras
na sua janela
nenhuma palavra
se lhe ouvia
mas ria-se às vezes
como se riem as crianças
há quem diga
que lhe morrera o mundo
e que perdera o tempo
numa noite de tempestade
outros dizem que aprendeu a falar com os mortos
e que passeia no fundo dos mares
que chama pelo respectivo nome cada estrela
e que tem uma música para cada pôr-do-sol
que guarda na pequena caixa de plástico
todos os sonhos dos homens
eu sei que ela tem uma janela nos olhos
imagino que corra na praia
e que caminhe sem dificuldades
na estrada do horizonte
julgo que é sozinha desde sempre
e que não gosta de andar com guarda-chuva
provavelmente
conhece mesmo o fundo dos mares
e nem sequer me custa acreditar que
se pudesse ver o que esconde
aquela caixa de plástico
ela me pareceria vazia
de Quando o Verão Acabar, Quasi Edições, 2002
Imagem: ineedchemicalx - Deviantart
Subscrever:
Mensagens (Atom)