25.5.08

António Lobo Antunes




[…]


Quero sair enquanto estou cheio de força. Voltar a escrever às escondidas, voltar a deitar fora o material inteiro depois de o corrigir e corrigir. Fazia autos de fé junto à árvore do quintal dos meus pais, ficava a assistir ao papel que ardia, a escurecer, a torcer-se, a voar em cinzazitas na direcção da capoeira, comigo numa mistura de alivio e pena, pena não sei bem de quê. A seguir esquecia-me da pena e do alívio e recomeçava. Ao publicar vi-me enredado numa teia de editores, agentes, tradutores, jornalistas, oficiais do mesmo ofício e deixei de me sentir livre. Há por aqui, no lugar onde moro, um sem-abrigo de que gosto. Conversamos bastante. Gesticula e as mãos são as folhas dos ramos dos seus braços, lá na ponta, a tremerem. Uma destas semanas dei com ele a dançar no passeio, com um sorriso enorme. Disse, ao cruzar-me com ele:

- Estou-me a cagar.

e continuou o seu bailado, sozinho, lá para trás. Não me pediu cigarros nem dinheiro: estava a cagar-se. Não tornei a vê-lo e pergunto-me por onde andará agora que é inverno, faz frio, chove muito. Não o acho debaixo de cartões e trapos, numa arcada, num degrau. Desconheço como se chama. Trata-me por
– Amigo
trato-o por
– Amigo
e é tudo. Espero que continue a cagar-se. Se eu conseguisse dançar com ele, como ele. Ao longo da vida tenho coleccionado pessoas assim. A noite neste bairro é dura, marginais, prostitutas, o rol inteiro. Uma ocasião abraçou-se a mim a chorar, numa altura em que não estava a cagar-se. Sofria como um cão. Lá arribou com umas cervejas, uns cigarros. De cabelos compridos, barba. Nunca lerá isto, nunca saberá que falei dele. Disso tenho pena. Gostava que esbarrássemos de novo

– amigo
esperar que do fundo da barba me chegasse o seu
– Amigo
primeiro baixinho, depois a engrossar
– Amigo

pergunta-me

- Tem uma moeda por acaso?

na certeza que eu tinha uma moeda por acaso e lha ia dar por acaso. O que lhe sucedeu, amigo? E de novo a dança, de novo o sorriso

- Estou a cagar-me

e eu a cagar também, caminhando os dois, rua fora, até ninguém nos ver, deixando aquele que escrevia, o António Lobo Antunes, a olhar para nós, a meter a chave à porta e a instalar-se, de cotovelos na mesa e mãos no queixo, diante de um tampo vazio.


excerto da Crónica de António Lobo Antunes na revista Visão – 2009/02/19
Imagem de: Sheila Smart

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