6.5.08

Aquilino Ribeiro



[…]

Telmo quedou-se embevecido, devorando-a com os olhos e possuído não de temor, mas de respeito ante aquele espelho de fragilidade e formosura. Tinha o direito de ser perverso com quem apenas seria sensual por natureza e, contas feitas, fácil de render em sua pobre indefensão?! Narinas delgadas formadas por arestas lineares e curvas perfeitamente simétricas, sobrancelhas descidas para o globo ocular como conchas de nácar, a face escorrida e uma testa erecta sem exagero, a sua expressão, pois que se lhe não descortinava o vínculo temperamental da boca, era duma nevada juventude a pedir piedade. Contemplando-a, teve de súbito o palpite de que ela o espreitava por uma frestazinha inverificável do olho esquerdo, tão exígua como a pupila dum gato no pino do dia. E foi o suficiente para o acender. Encontrava-se já na postura de adorador, e mediante calculado exagero, com arregalar os olhos e exalar um hausto de opressão, encareceu seu êxtase.
Seria para fugir a tal visagem, tida por não simulada, que ela se teria voltado para o outro lado, donde não o poderia ver? Fingindo-se adormecida, a mão dela, que estava por cima da manta, escorregou para o joelho por baixo da orla. E logo a mão dele se lançou a preá-la. Com o movimento a manta descaiu para aquele lado e rasou o tapete. A coberto, como se o entremez se passasse em pleno sono, Dionísia deu um sacão para desprender-se. Mas foi um sacão moderado, que não descompôs a ordem e recato em que se achava a carruagem. Segurando-lha primeiro sem grande esforço, a mão bonita acabou por entregar-se à mercê. Primeiro em rendição passiva. Os dedos fortes é que apertavam, se contorciam com aliciantes afagos em torno dos dedos esbeltos. Em seguida, a garra espalmou-se, humilhando-se à sua semimorta, anediando-a desde o cotovelo, estância alta do santuário, ao pulso, seu primeiro degrau. Uma vez, duas, três vezes a carícia de veludo subiram mansa e suavemente a via voluptuosa com mais sabedoria que a dum encantador que modula na flauta a ária que há-de subjugar a serpente. Em certa ocasião afigurou-se-lhe que a mão deliciosa parecia ter pena de ficar inerte. E Telmo redobrou de blandícias. Pouco a pouco foi sentindo latejar mais ágil o sangue arterial, e que um frémito inefável a tomava como a um pentacórdio. Sim, a mão saía do seu torpor e correspondia com languidez aos dedos amorosos. Lentos e a medo abraçaram-se aos outros dedos. Para se certificar de que não era logro, Telmo suspendeu o seu manejo. E sentiu os dedos maviosos esboçar uma leve, levíssima pressão, a confessar o seu acordo.
A traquitana ia rolando, tropeçando, de escantilhão quando o caminho era em declive. O boleeiro praguejava e Dª Escolástica, no processo para a mumificação, se abria um olho fechava-o logo balouçada sobre a a eternidade.
Dionísia e Telmo iam de pálpebras descidas, cabeças reclinadas sobre as cortinas da cabeça. As mãos deles conversavam ás escondidas. Faziam plena confissão geral sem se saber mentir, como no princípio do mundo amantes à boca das cavernas. Agora os dedos finos e vibráteis enroscavam-se nos dedos fortes e nervosos. Era a entrega absoluta e desenganada.

[…]


excerto de A Casa Grande de Romarigães, Ed. Bertrand, Lisboa 1985.
imagem:iCarlos Bell Ower

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